por Claudia de Lucca Mano
Recente notícia abalou o mercado de cannabis medicinal brasileiro: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu expressamente a importação de cannabis in natura, bem como flores e partes da planta, para uso pessoal e medicinal. A medida recente frustra pacientes e empresas intermediadoras, que enxergam retrocesso na luta pelo acesso à cannabis medicinal no Brasil.
A medida foi oficializada na Nota Técnica (NT) 35/2023, publicada no último dia 19 de julho, que esclarece que a agência reguladora considera que a regulamentação atual dos produtos de cannabis no Brasil não inclui a permissão de uso de partes da planta, mesmo após o processo de estabilização e secagem ou mesmo nas formas rasuradas, trituradas ou pulverizadas.
Sim, existem médicos e pacientes que lançam mão da forma vaporizada de cannabis para tratar as mais diversas condições de saúde. Neste contexto, empresas intermediadoras, que representam marcas de cannabis de fora do país, passaram a oferecer a opção em seu cardápio/catálogo de importação direta para uso compassivo.
Importante destacar que a Anvisa sempre permitiu que pacientes fizessem a importação direta, para uso próprio, de medicamentos não disponíveis no Brasil. Para isso era necessária receita e o laudo médico e uma autorização excepcional, individual, caso a caso. Tudo isso ocorre no campo do uso compassivo de medicamentos chamados de órfãos.
Uso compassivo vem de compaixão, empatia. Medicamentos órfãos são aqueles que não estão registrados perante a Anvisa no Brasil, mas que existem em algum lugar do mundo. São drogas lícitas, que servem para tratamento de doenças raras, ou seja, aquelas condições de saúde que atingem uma parcela muito pequena da população.
Em outras palavras, são medicamentos que por seu alto custo, baixa demanda e alto grau de especialidade, não são encontrados nas farmácias e drogarias brasileiras.
A recente nota técnica da Anvisa, entretanto, dispõe de uma regra de transição para conclusão dos processos que já estavam encaminhados. Qual seja: A partir do dia 20 de julho de 2023 não serão concedidas novas autorizações para importação da planta Cannabis in natura, partes da planta ou flores. As autorizações já emitidas terão validade até dia 20 de setembro. Além disso, haverá um período de 60 dias para conclusão das importações que já estiverem em curso e/ou autorizadas.
A discussão sobre o uso da cannabis para fins medicinais no país tem um roteiro de quase uma década.
Em 2014, uma ação civil pública deu início ao longo processo de liberação da cannabis para uso medicinal no Brasil. Um movimento liderado por mães foi ganhando força, a partir da percepção científica de que medicamentos derivados de cannabis eram responsáveis pela melhora expressiva de quadros de saúde graves e incapacitantes de crianças. A primeira decisão judicial favorável, considerada como paradigma, foi em benefício da paciente Anne Fischer, também no ano de 2014.
Na ação coletiva de 2014, a 16ª Vara da Justiça Federal de Brasília determinou que a Anvisa incluísse as substâncias derivadas de cannabis na lista de drogas lícitas, permitidas para uso farmacêutico no país. Não somente o canabidiol, mas também o tetrahidrocanabinol (THC), hoje, está autorizado na lista da Portaria 344/98.
A lista é o instrumento regulatório que, de um lado, permite o uso medicinal das substâncias, e de outro, orienta os órgãos de segurança pública sobre o que é considerado droga no Brasil. Cabe à Anvisa organizar e manejar a Portaria 344/98, orientando a atividade preventiva-repressiva do estado, no contexto da política nacional de drogas (Lei 11.343). Por exemplo, são autorizadas historicamente substâncias opioides, como a morfina, com alto potencial de causar dependência química e psíquica.
O primeiro medicamento registrado no Brasil foi o Mevatyl que contém quantidades proporcionais de THC e CBD (27mg/ml e 25 mg/ml). Neste caso a Anvisa já avaliou a eficácia e segurança dessas substâncias, registrando o produto que pode ser encontrado em drogarias, porém com custo ainda alto e proibitivo para a grande maioria da população.
Com o aumento expressivo de demanda por produtos derivados da cannabis medicinal, em março de 2022 a diretoria colegiada da Anvisa publicou uma resolução dirigida a estes produtos, a RDC 660, no intuito de desburocratizar a vida e acesso de pacientes. A medida foi considerada um avanço, já que permite a importação direta, em nome de pessoa física, mediante autorização da agência. O processo pode ser feito pela própria pessoa no site da Anvisa, ou através de empresas intermediadoras, que fazem a ponte com fabricantes no exterior, ajudando pacientes a cumprir as etapas burocráticas. O produto é entregue diretamente na casa do paciente.
A Anvisa então organizou uma lista de marcas de produtos importados que teriam aprovação automática. Isso agilizou a vida de muitos brasileiros: uma importação direta que demorava em média 45-60 dias em 2021, passou a ser autorizada em cerca de 10-20 dias após a medida.
Agora, a Anvisa, com a nova nota técnica, declarou que a regulamentação atual dos produtos de cannabis no Brasil não inclui a permissão de uso de partes da planta, mesmo após o processo de estabilização e secagem ou mesmo nas formas rasuradas, trituradas ou pulverizadas.
Portanto, sem alterar a resolução da diretoria colegiada 660, a agência fez ajustes pontuais e práticos, através de uma “simples” nota técnica, proibindo “a importação da Cannabis in natura, bem como de flores e partes da planta”. A agência parece travar internamente uma luta sobre os efeitos (comprovados) científicos na melhora dos pacientes contra uma corrente que acredita que a liberação da cannabis medicinal seria uma espécie de liberação de uma droga ilícita no país.
*Claudia de Lucca Mano é advogada especializada na área de Vigilância Sanitária e Assuntos Regulatórios e fundadora da Farmacann – Associação para Promoção da Cannabis Medicinal Manipulada/Magistral.