Análise de bateristas renomados, feita por docente da UFSCar, evidencia importância da vivência cultural para diferenciar a música brasileira ao redor do mundo
A bateria, presente em uma variedade de ritmos brasileiros – do samba ao baião e maracatu -, apresenta particularidades importantes na forma como é tocada no País, com o que passou a se chamar “Brazilian feel” (ginga brasileira), que diferencia nossos bateristas de seus colegas mundo afora.
O estudo sobre esse “Brazilian feel” na bateria revela dois elementos principais: a adaptação de conceitos vindos de instrumentos de percussão (como pandeiro, tamborim, surdo e zabumba) e um gingado rítmico próprio, que envolve tanto os sons criados quanto o movimento corporal de quem toca o instrumento. Essa caracterização é resultado da pesquisa de Daniel Marcondes Gohn, docente do Departamento de Artes e Comunicação (DAC) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde coordena a Licenciatura em Música no programa Universidade Aberta do Brasil (UAB).
Em suas pesquisas, Gohn realiza análises históricas e técnicas e, para isso, compilou trabalhos sobre o estilo e as características técnicas musicais de renomados bateristas, como Edison Machado, Airto Moreira, Dom Um Romão, Márcio Bahia, Wilson das Neves, Hélcio Milito e Luciano Perrone.
Segundo o pesquisador, a adaptação do que é tradicionalmente tocado com instrumentos de percussão “de mão” abre caminhos para a criação de uma voz própria. “Ao simularem conjuntos de percussão na bateria, os músicos buscam suas identidades individuais e um ambiente conectado à sua herança musical”, descreve. Já a principal característica da “ginga brasileira” está relacionada à constatação de que os músicos tocam em torno de flutuações rítmicas, o que significa fugir da rigidez – tanto corporal como nos toques da bateria – que frequentemente marca artistas de outros países.
“O gingar está relacionado à mobilidade do corpo. O termo é usado para descrever os movimentos na capoeira, manifestação cultural que representa, de forma viva, a essência do povo brasileiro. Assim, o gingar significa intrinsecamente a expressão de ser brasileiro – tanto na criação de ideias rítmicas, quanto na movimentação corporal”, reflete o docente da UFSCar.
Jeitinho brasileiro
O estudo das técnicas utilizadas pelos bateristas evidencia que não há um padrão único a ser seguido, tampouco a adaptação direta de instrumentos de percussão para “traduzi-los” à bateria; é uma releitura, uma ressignificação, para justamente construir um resultado próprio para esse instrumento, com peculiaridades culturais.
“Perrone adaptou os padrões rítmicos e a sonoridades para tocar na bateria. Neste caso, apoiou-se em nuances de instrumentos como ganzá, chocalho e caixa, construindo um samba batucado. Já Dom Um Romão tentou emular os sons do repinique, por meio da caixa da bateria. Enquanto isso, Moreira mesclava ritmos do Nordeste com improvisação de jazz, usando diferentes instrumentos de percussão, que foram adicionados ao seu kit de bateria. Ele explorou ritmos como frevo, coco, xaxado e baião”, exemplifica Daniel Gohn.
“Curiosamente, ao analisarmos um percussionista classicamente formado, integrante de uma orquestra exigente em algum outro país com longa tradição musical, é comum que não consiga tocar, de forma convincente, o que uma criança de 10, 12 anos, toca naturalmente por aqui, no Brasil”, relata o pesquisador. Sua hipótese é que essa criança aprende a se expressar com naturalidade no instrumento pela tradição oral e pela cultura do País, já conseguindo reproduzir a “ginga brasileira”.
“Muitas vezes, a técnica do profissional é exata e engessada demais. Para ele, é difícil abandonar a rigidez da sua precisão rítmica e ceder a uma certa elasticidade na colocação das notas. Não é fácil explicar, mas o ‘Brazilian feel‘ vem justamente da vivência e da experimentação dos brasileiros devido à sua cultura”, reforça Gohn.
No Brasil, gostando ou não do Carnaval, a pessoa facilmente reconhece os ritmos das músicas desta época e os escuta em variadas situações. Um outro exemplo é o baião, originário do Nordeste, que com Luiz Gonzaga teve alcance nacional. “Essas vivências se integram, também, a outros elementos – a forma como falamos, andamos, dançamos… o próprio movimento corporal de uma pessoa tocando bateria revela algo, o que traz ainda mais especificidade ao instrumento tocado naquele contexto”, detalha o pesquisador.
Com isso, existe uma dificuldade, inclusive, de colocar tais práticas na notação musical. Em livros relacionados ao estudo da música brasileira, há comumente uma simplificação dos ritmos. “Se dividirmos, por exemplo, uma determinada pulsação em quatro partes iguais e exatas, conforme vários livros indicam para se tocar o samba, percebemos que o ritmo não soará nada brasileiro. Ou seja, não há 25% do tempo para cada uma das batidas; para formar o som na prática, elas terão de ser flexíveis e variáveis, sem necessariamente haver uma divisão em partes iguais”, ilustra Gohn.
Alicerçada em raízes culturais, a “ginga brasileira” segue em evolução e aberta à inovação, estabelecendo um terreno fértil para a nova música e novas pesquisas. De acordo com o docente da UFSCar, há um campo vasto a ser explorado nos estudos da bateria, já que frequentemente o instrumento ainda é visto como mero elemento de acompanhamento e assim permanece em um papel secundário. Para ele, é essencial, em estudos futuros, considerar a bateria como o ator principal das investigações acadêmicas.
Parte das pesquisas do docente foi publicada no capítulo intitulado “The drum kit beyond the anglosphere: the case of Brazil“, que compõe o livro “Cambridge Companion to the Drum Kit“, publicado pela Cambridge University Press.
A obra mostra-se relevante por ser um tratado acadêmico exclusivamente sobre a bateria, com autores de diversas partes do mundo, reunindo textos que abordam a personalidade do baterista, seu papel social, assim como análises musicais e aspectos de interação dos bateristas com outros músicos e com a sociedade. O livro pode ser adquirido aqui.