É fato que a pandemia colocou uma lupa nas desigualdades sociais e econômicas que já existiam. Quarentena regada a cerveja e churrasco é muito diferente da sem comida. Todos nós tivemos que ficar em casa em prol da coletividade. Mas, até onde vai o “nós” se o “eu” tem fome? E para que serve o “nós” se o “eu” tem banquete? Se estamos no mesmo barco, cadê o coletivo? Isso não existe faz tempo!
A sociedade líquida descrita por Bauman revela individualidade e emancipação de uma coletividade unida por laços frágeis e por isso, altamente mutáveis. Tudo está acontecendo muito rápido. Nada é feito para durar. Isso dá muito trabalho. É melhor trocar por outro e consumir mais. Há pouca verdade em tudo. Usamos filtros, propagamos mentiras, queremos colher sem plantar. Tudo pronto parece ser melhor. Observar e refletir leva tempo.
O “eu” por muitas vezes conflita com o “nós”. Se eu não quero usar máscara e fazer distanciamento na fila do banco, quem vai me obrigar? Vão me multar? E se eu não quiser me vacinar? Até onde vai o direito de exercício dos direitos individuais, ainda que constitucionais, se podem, por vezes colocar em risco a coletividade?
O STF decidirá, em breve, se pais, por convicções filosóficas ou religiosas, podem deixar de vacinar seus filhos. Ainda que o Estatuto da Criança e Adolescente pregue a obrigatoriedade da vacinação, há um viés constitucional que abre espaço para a discussão como o poder familiar exercido de maneira esclarecida sobre a recusa da vacina por entender que é invasiva, tipo de medicina, muitas vezes rechaçada por veganos, por exemplo.
De modo diferente, a mentira e a falta de responsabilidade social, hoje, também chamada de fake news, americanizada para dar ar menos pesado, tem feito desserviços na área da saúde. Várias notícias falsas sobre vacinação têm causado medo, fazendo com que a adesão ao Programa de Imunização do SUS, modelo no mundo, perca força. Segundo o Datasus, desde 2004, os números só vêm diminuindo, o medo e informações falsas são grandes responsáveis por isso.
Mas, é natural que haja medo nessa sociedade líquida, de relações frágeis e passageiras. A confiança é sentimento escasso. A verdade, ainda que científica, fica nas mãos dos políticos, de interesses econômicos, do “eu” e do momento.
Quem tem razão? Dória ou Bolsonaro? Vamos ou não tomar a vacina? Podem me obrigar e multar? Outra Revolta da Vacina? Qual é segura? Medo e novamente o conflito entre o “eu” e o “nós”.
Não sabemos em quem confiar. Não nos sentimentos representados por aqueles que nós mesmos elegemos. Há muita fragilidade e insegurança nas relações humanas. Pouquíssimos têm credibilidade. Hoje é, amanhã deixou de ser. O “eu” só passa a ser “nós” por manobras eivadas de fakes e liquidez que no fundo, deseja satisfazer o indivíduo.
Ana Lúcia Amorim Boaventura é advogada, especialista em Direito Médico e da Saúde, professora da faculdade de Medicina da PUC-GOIÁS e membro da Câmara Técnica de Direito Médico do CRM-GO.