Especialista afirma que maior erro do governo brasileiro foi não acreditar na gravidade da covid-19. “Como se estivéssemos em uma proteção imaginária. O presidente [Bolsonaro] minimizou os efeitos da doença e da mortalidade e em momento algum defendeu as medidas coletivas de distanciamento”, ressalta Maria Juliana Corrêa, em entrevista à Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae)
Brasilia, 24/07/2020 — Com mais de 84 mil mortes no país pelo novo coronavírus, a situação dos trabalhadores da Caixa Econômica Federal está cada vez mais crítica. Além de não terem a atividade de trabalho presencial suspensa, os empregados estão expostos, lidando com milhões de pessoas nas agências, diariamente.
Para falar sobre o tema, a Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa (Fenae), em parceria com a associação que representa os empregados do banco no Rio Grande do Sul (Apcef/RS), convidou Maria Juliana Moura Corrêa, PhD em epidemiologia, pesquisadora associada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na área de Saúde do Trabalhador e que, no momento, realiza avaliação das questões de riscos à classe trabalhadora nesse cenário de pandemia. A especialista avaliou a atual situação do país, dos trabalhadores e traçou uma perspectiva do cenário para os próximos meses.
No entendimento de Maria Juliana Corrêa, o governo precisa investir mais em tecnologia e automatização dos processos para se evitar filas e aglomerações nas agências. “Ao mesmo tempo, os sindicatos precisam continuar defendendo esses trabalhadores [bancários da Caixa], que precisam ter o direito de viver”, destaca a epidemiologista.
Confira a íntegra da entrevista concedida à Fenae:
1 — A covid-19 ataca o sistema respiratório ou é uma doença que ataca o sangue?
Apesar de ser uma Síndrome Respiratória Aguda Grave, que é o próprio nome do novo coronavírus (Sars-CoV-2), o que se tem visto é que, em muitos casos, o vírus também ataca diversos órgãos.
É uma síndrome bastante grave e pouco conhecida. O que já se sabe é dessa gravidade relacionada à falta de oxigênio que ataca as células. Certamente, isso está relacionado a outras descobertas relacionadas à hipóxia silenciosa. Normalmente, se apresenta no sangue níveis de saturação de cerca de 98% e o que se tem observado é que pacientes evoluem muito rápido. Então, é um problema ligado diretamente às células e acaba comprometendo vários órgãos pela hipóxia.
2 — Há evidências de sequelas pós-coronavírus?
Por ser uma doença sistêmica, vai atingir o sangue e todos os outros sentidos corporais. Pode ocorrer falta de oxigênio, principalmente no cérebro, causando problemas neurológicos graves assim como complicações cardiovasculares, como trombos e coágulos sanguíneos.
Há previsões de que muitas pessoas precisem fazer transplante. As pessoas podem vir a ter insuficiência renal, complicações cardiovasculares, neurológicas e, mesmo depois de recuperados, podem ficar com sequelas nesses órgãos.
3 — Máscaras realmente funcionam?
Apenas a máscara, isoladamente, não vai funcionar. A máscara precisa estar vinculada a uma série de mudanças e de condutas individuais e coletivas.
Então, vamos ter máscaras diferenciadas para o uso de trabalhadores que estão manipulando materiais que possam estar contaminados. Essas, em específico, protegem tanto de gotículas no ar quanto de aerossóis, que são partículas menores que as gotículas, normalmente encontradas em ambientes hospitalares.
Já as máscaras para a população em geral têm o objetivo de não espalhar no ar essas gotículas pela respiração das pessoas que possam estar contaminadas ou que podem estar doentes e não saibam. Essas máscaras, com a recomendação de duplo tecido, não vão impedir a pessoa de se contaminar; mas, vão impedir a dispersão dos doentes que possam estar na comunidade.
Então, as máscaras são importantes, são eficientes e, mesmo as de menor qualidade, sempre vão reduzir a propagação da doença. Mas, estamos falando de um controle coletivo. As máscaras devem estar associadas a outras atitudes de boas maneiras, de higiene. Lavar as mãos com água e sabão é, inclusive, muito mais importante que o álcool. Também orientamos para a higienização dos calçados, limpeza de superfícies etc. Podemos dizer que esse conjunto de ações é eficiente para conter a propagação.
4 — Por que várias pessoas, mesmo sendo novas e consideradas saudáveis, acabam morrendo após serem infectadas?
Essa questão em relação aos idosos ainda é pouco clara. Sabemos que, independentemente da faixa etária, as pessoas continuam se contaminando e morrendo. Do ponto de vista epidemiológico, dados mostram que 80% dos infectados vão ter sintomas leves e 20% vão ter sintomas graves. Não era esperado que jovens e crianças tivessem sintomas graves.
Uma hipótese que os estudos ainda estão levantando e que vem ganhando maior força junto aos cientistas é a questão genética. Seria uma hipótese de maior suscetibilidade e vulnerabilidade em relação à entrada do vírus, que seria facilitada pela pré-disposição ou por um sistema imunológico baixo, independentemente da idade.
5 — Qual foi o principal erro brasileiro para chegarmos ao ponto que chegamos?
O nosso maior erro, desde o início, foi o de não se acreditar na gravidade da situação. Mesmo com o vírus crescendo em todos os países em uma velocidade absurda, desde o início do ano, o Brasil só começou as ações de contenção em março, como se estivéssemos em uma proteção imaginária.
O maior erro é a posição do governo federal, do presidente [Bolsonaro], que minimizou os efeitos da doença e da mortalidade e, em momento algum defendeu as medidas coletivas de distanciamento. Acreditar na imunidade de rebanho, que é o que o governo vem fazendo, é uma postura de genocídio.
Até é possível adquirir uma imunidade de rebanho; mas, será com uma mortalidade muito grande da população brasileira. As pessoas vão morrer de acordo com suas condições sociais maior ou menor e as pessoas mais vulneráveis serão mais expostas.
O governo acabou assumido uma conduta de que, sim, as pessoas podem adoecer e morrer. Nessa lógica, quem vai morrer, na verdade, é a população que não pode exercer o distanciamento social. A pandemia revela a divisão de classes e a desigualdade porque tem um conjunto de trabalhadores que foram obrigados a trabalhar e lhe foram negados os direitos de proteção e distanciamento social, considerados essenciais.
A única medida de proteção, que é o distanciamento, não foi garantida para todos. O governo está preocupado simplesmente se tem leitos suficientes e cemitérios para enterrar as pessoas.
O governo não quer enfrentar a pandemia. Eles se apossam de uma conduta de genocídio assumida publicamente. Além disso, ignorou totalmente políticas de financiamento do SUS [Sistema Único de Saúde], financiamento para a ciência, apoio à educação e financiamento para a população como um todo, para que todos pudessem ter igualdade para ficar em casa exercendo seu trabalho e sua educação.
6 — Grande parte dos bancários foi obrigada a trabalhar mesmo no auge da contaminação. O que mais esses profissionais podem fazer parar se proteger, além das dicas tradicionais?
Primeiramente, não podemos normalizar o trabalho presencial de nenhum trabalhador, nesse momento. Na Caixa, a situação é ainda mais grave por causa do auxílio financeiro [Auxílio Emergencial de R$ 600], que foi constituído sem nenhuma estratégia de proteção aos trabalhadores. Não há uma preocupação do governo com a morte das pessoas e em relação aos trabalhadores — isso fica muito mais evidente.
Eles são impedidos de exercer a única proteção que está definida até o momento, que é o distanciamento social, e eles também estão impedidos de usar o direito de recusa, já que são obrigados a trabalhar. E, pior, sem nenhuma proteção a mais. Tudo que se diz que não pode acontecer nessa pandemia está acontecendo com os trabalhadores da Caixa.
O governo precisa trabalhar com tecnologia e automatização dos processos para se evitar as filas e aglomerações de pessoas nas agências. Ao mesmo tempo, os sindicatos precisam continuar defendendo os direitos desses trabalhadores. Os trabalhadores precisam ter o direito de se recusar a trabalhar presencialmente e ter o direito de viver.
Além disso, é possível pensar em barreiras sanitárias no interior do trabalho. A Caixa precisa pensar em tipos de atendimento especiais para pessoas com suspeitas da doença ou com familiares com casos identificados e conter para que não se formem essa fila, com contingência de pessoas adoecidas. Além disso, mesmo no interior das agências, é preciso fazer barreiras sanitárias desde o atendimento, isolando qualquer possibilidade de contato com outras pessoas.
Dois pontos importantes para conter a epidemia: rastreamento dos casos para reduzir de forma geral a transmissibilidade e barreiras sanitárias nos bairros e nos locais de trabalho.
7 — Como você enxerga o cenário brasileiro para os próximos meses, já que as medidas de isolamento social estão sendo afrouxadas cada vez mais?
A situação brasileira, infelizmente, é dramática. A escolha da política é genocida. Muitos vão morrer e vão morrer de acordo com a determinação social e a classe social a que pertencem. A nossa única esperança de sair dessa pandemia é apostar na ciência, nas instituições que, apesar de todos os desmontes, continuam diariamente trabalhando dobrado e sem recursos para buscar reforços na assistência e no desenvolvimento da vacina.
Não existe outra possibilidade de imunidade. Inclusive, há teorias de que a pessoa que já teve o vírus pode ter novamente. Então, o único passaporte que temos para a imunidade é a vacina.
Não é possível sair dessa pandemia com ações isoladas. Precisamos pensar no coletivo. Essa pandemia também nos revela a fragilidade do ser humano e a necessidade de nós, brasileiros e pessoas de outros países, enfrentarmos a questão da defesa do meio ambiente; especialmente, ao meio ambiente do trabalho. Esse cenário dramático nos leva a refletir sobre a necessidade de se implementar, cada vez mais, políticas coletivas que atendam a população como um todo.