Enquanto secretarias, Ministério da Educação e escolas discutem possíveis datas, protocolos sanitários, modelo híbrido de ensino e outras medidas para o retorno das aulas presenciais, a sociedade ainda se questiona se este é o melhor momento para a retomada.
Apesar de muitos pais que voltaram à rotina de trabalho tradicional preferirem o retorno das crianças, o questionamento que fica é: será que as escolas estão preparadas para acolher os estudantes neste momento no país em que a pandemia ainda não está controlada? Para a diretora da Fundação SM e ex-secretária de educação do governo, Pilar Lacerda, quem deve definir os próximos passos é a ciência.
“Não são os pais, professores e diretores. É necessária uma ação conjunta entre gestores da escola e da saúde, com a escuta das famílias dos estudantes e dos profissionais, mas, antes de tudo, temos que escutar o que a ciência tem a dizer”, afirma.
Apesar das incertezas, Pilar acredita que, quando os estudantes voltarem, a prioridade deve ser o acolhimento e entendimento de como cada um viveu essa quarentena.
Confira a entrevista:
Uma das propostas de volta às aulas é o ensino híbrido. A senhora acredita que isso pode funcionar no ensino público e particular do Brasil? Se não, o que é preciso mudar para que essa proposta se torne realidade?
O ensino híbrido tem possibilidade, sim, de funcionar no Brasil, tanto na rede pública quanto na particular. Esse modelo de ensino não representa exclusivamente o uso de tecnologias, mas atividades que serão parte presencial e parte a distância. Então, se a escola conhece bem os seus estudantes, ela sabe quais as condições de cada um para organizar e planejar o ensino híbrido coerente com as condições necessárias de seus alunos.
O ensino híbrido provoca uma discussão importante que sempre foi deixada em segundo plano no Brasil: democratização e acesso à tecnologia, principalmente como forma de levar o ensino a todos. Qual a melhor forma de enfrentar essa dificuldade na educação?
A melhor forma de enfrentar a questão da tecnologia é enfrentar a desigualdade social e econômica do Brasil, que gera a forte desigualdade educacional. Precisamos entender que são necessárias políticas compensatórias para grupos que foram historicamente prejudicados, como incluir acesso à internet na cesta básica. Também é importante olhar para os professores, uma vez que nem todos têm em suas residências boas conexões de internet. É necessário pensar em política pública que garanta a todas as crianças e jovens brasileiros o acesso à internet gratuita, além de equipamentos, seja um smartphone, um laptop ou um tablet. Mais do que isso, professores precisam de formação para poder preparar essas atividades e se sentirem seguros com elas.
Qual o desafio da escola em acolher alunos que tiveram dificuldade no ensino à distância e o que fazer para que eles consigam acompanhar a matéria depois de tanto tempo parados?
Só posso ministrar uma aula remota, por qualquer aplicativo, se eu tiver certeza de que 100% dos meus alunos têm acesso garantido. Se esses estudantes não têm, eu não posso utilizar esse método, ou estaria agravando a desigualdade. Essa é a primeira questão: eu não posso agravar a desigualdade fazendo atividade a que parte dos meus alunos não terá acesso. A utilização de atividades analógicas, como exercícios do livro didático ou atividades impressas, gera um acolhimento muito forte, uma criação e manutenção do vínculo das escolas com os alunos, que é o mais importante. As escolas que mantiveram os vínculos com seus alunos, com certeza receberão estudantes mais motivados. Quando os estudantes voltarem, é preciso esse acolhimento, é preciso uma escuta do que cada um passou, de como cada um viveu essa quarentena, porque esta volta não é o retorno de um período de greve ou de férias, é a volta de uma pandemia em que mais de cem mil brasileiros morreram e muitos dos nossos estudantes e profissionais da educação terão sido afetados pelo luto. Isso é muito mais importante do que qualquer conteúdo: acolher, escutar, saber a situação de cada um e, aí, pensar em atividades que garantam o aprendizado. Vamos ter de selecionar o que é essencial, e não acho que seja obrigação terminar o ano letivo agora ou em março. Para mim, a melhor saída é reunir 2020 e 2021 em um ano, um ano e meio, e não reprovar ninguém, além de analisar as condições de cada estudante com trilhas personalizadas para cada aluno.
A senhora considera esse momento importante para a retomada das aulas ou acredita que é necessário que os alunos continuem em casa?
Quem deve definir a volta às aulas não são os pais, professores ou diretores. É necessária uma ação conjunta entre gestores da escola e gestores da saúde, com a escuta das famílias dos estudantes e dos profissionais. Mas, antes de tudo, temos que escutar o que a ciência tem a nos dizer. Na educação infantil, a questão é mais complexa, porque é muito difícil manter o distanciamento social de crianças de dois, três e quatro anos. No fundamental I, ainda é complicado, essas turmas terão de ser divididas. Então, nesse momento, acho que nós temos que pensar primeiro na vida. Quando as pessoas dizem que os estudantes não são grupo de risco, temos que lembrar que eles moram com pais, mães, avós, tias, padrinhos, madrinhas, e que muitos estarão nos grupos de riscos. A volta deve ser organizada, o espaço deve ser sanitariamente tratado, e a ciência e os profissionais da saúde devem dar a palavra final.
Depois de tanto tempo longe da escola, qual a maior dificuldade que professor e aluno vão encontrar na volta às aulas?
Serão muitas. Uma delas é que o nosso modo de trabalhar, com uma rotina muito forte, com horários muito definidos e com uma turma bem delineada, passou e não deve voltar até a vacina. Espero que, quando voltarmos, tenhamos uma concepção de escola ampliada, onde todos os locais sejam espaços de aprendizagem, que criemos laboratórios e oficinas no pátio, na cantina, nas quadras, nas bibliotecas. Ou seja, que todos os espaços da escola possam ser usados significativamente. Os professores terão que passar por formação para entender novas formas de avaliação, porque não será possível avaliar crianças da mesma maneira, com a mesma prova. A escola vai ter que repensar seu papel no mundo. Este é o momento ideal para nos aprofundarmos na concepção da educação integral, não como tempo integral, mas a que vê a multidimensionalidade dos alunos e que busca outros agentes além dos professores, outros espaços além da sala de aula e o envolvimento qualificado das famílias.